07 julho, 2009

O que acontece em Xinjiang? 07/07/2009

Domenico Losurdo
Tradução de Jaime Clasen

Lembram-se do que acontecia nos anos da guerra fria e, sobretudo, na sua fase final? A imprensa ocidental nunca se cansava de noticiar o tema dos fugitivos da ditadura comunista em busca da conquista da liberdade. Na segunda metade da década de 1970, depois da derrota que sofreram o governo fantoche de Saigon e as forças de ocupação estadunidenses, o Vietnã finalmente reunificado era pintado como uma enorme prisão, da qual fugia o boat people desesperado, junto com sua fortuna e arriscando a vida. E com as variações de caso a caso, esse tema era repetido a propósito de Cuba, da República Democrática Alemã e de qualquer outro país excomungado pelo “mundo livre”.
Hoje, todos podem ver que das regiões orientais da Alemanha, da Polônia, Romênia, Albânia, etc., apesar da liberdade finalmente conquistada, o fluxo migratório para o Ocidente continua e até se acentua. Só que esses migrantes não são mais recebidos como combatentes pela causa da liberdade, mas são muitas vezes rejeitados como delinquentes, pelo menos potenciais. As modalidades da grande manipulação agora se tornaram claras e evidentes: a fuga do sul para o norte do planeta, da área menos desenvolvida (em cujo âmbito era colocado também o “campo socialista”) para a área mais desenvolvida e mais rica, esse processo econômico foi transfigurado pelos ideólogos da guerra fria como uma empresa política e moral épica, exclusivamente inspirada pelo sublime desejo de chegar à terra prometida, ou seja, o “mundo livre”.
Uma manipulação análoga está ocorrendo debaixo de nossos olhos, na China. Como explicar os graves incidentes que se verificaram em março de 2008 no Tibete e que, em escala mais ampla, nesses dias, estão se espalhando pelo Xinjiang? No Ocidente, a “grande” imprensa de “informação”, mas também a “pequena” imprensa de “esquerda” não têm dúvidas: tudo se explica com a política liberticida do governo de Pequim. No entanto, deveria fazer refletir o fato de que, mais do que instituições estatais, a fúria dos manifestantes tem como alvo a etnia han e, sobretudo, os negócios dos han.
Contudo, em qualquer livro de história se pode ler que, no Sudeste asiático (em países como a Indonésia, a Tailândia, a Malásia) a minoria chinesa, que muitas vezes graças também à cultura empreendedora que tem por trás, tem um peso econômico nitidamente superior à sua dimensão demográfica, é regularmente “o bode expiatório e a vítima de verdadeiros progrom”. Sim, no Sudeste asiático “o êxito econômico dos Hua quiao [os chineses de ultramar] é acompanhado de ciúmes que desembocam regularmente em explosões de violência antichinesa, que às vezes acabam perturbando as relações diplomáticas. Foi, em particular, o caso da Malásia durante a década de 1960, da Indonésia em 1965, quando as desordens internas foram o pretexto para o massacre de diversas centenas de milhares de pessoas. Trinta anos mais tarde, as revoltas que caracterizaram na Indonésia a queda do ditador Suharto e que golpearam sistematicamente a comunidade chinesa, chamaram de novo a atenção para a fragilidade da situação”. Não por acaso, o ódio antichinês foi muitas vezes comparado ao ódio antijudeu. Com o extraordinário desenvolvimento que estão conhecendo o Tibete e o Xinjiang, também nestas regiões tendem a se reproduzir os progrom contra os han, que são atraídos pelas novas oportunidades econômicas e que frequentemente veem os seus esforços coroados pelo sucesso. O Tibete e o Xinjiang atraem os han do mesmo modo que Pequim, Xangai e as cidades mais avançadas da China atraem os empresários e os técnicos ocidentais (ou chineses de ultramar), que muitas vezes desempenham um papel importante em setores onde podem ainda fazer valer a sua especialização superior. Não tem sentido explicar os graves incidentes no Tibete e no Xinjiang com a teoria da “invasão” han, uma teoria que certamente não funciona para o Sudeste asiático. Por outro lado, também na Itália e no Ocidente, a luta contra a “invasão” é o cavalo de batalha dos xenófobos.
Agora, porém, concentremo-nos no Xinjiang. Em 1999, a situação vigente nessa região foi descrita pelo general italiano Fábio Mini na revista “Limes” da seguinte maneira: está em curso um extraordinário desenvolvimento, e o governo central chinês está comprometido em “financiar, com retorno quase zero, imensas obras de infraestrutura”. Pelo que parece, o desenvolvimento econômico anda junto com o respeito pela autonomia: “A polícia local é composta em sua grande maioria por uigures”. Apesar disso, não falta a agitação separatista, “parcialmente financiada por extremistas islâmicos, como os talibãs afegãos”. Trata-se de um movimento que “se mistura com a delinquência comum” e que está manchada de “hediondez”. Os atentados parecem visar em primeiro lugar os “uigures tolerantes ou ‘colaboracionistas’” ou os “postos policiais”, controlados, como vimos, pelos uigures. Em todo caso – concluía o general, que não escondia as suas simpatias de natureza geopolítica pela perspectiva separacionista – “se os habitantes do Xinjiang fossem chamados hoje a um referendo sobre a independência, provavelmente votariam em maioria contra”. E hoje?
Na “Stampa”, Francisco Sisci relata de Pequim que “muitos han de Urumqi se lamentam pelos privilégios de que gozam os uigures. Estes, de fato, como minoria nacional muçulmana, em nível de igualdade têm condições de trabalho e de vida muito melhores do que seus colegas han. Um uigur no trabalho tem a permissão de parar mais vezes durante a jornada para cumprir com as cinco orações muçulmanas tradicionais do dia [...] Além disso, podem não trabalhar nas sextas-feiras, dia feriado muçulmano. Em teoria, deveriam compensar no domingo. Na verdade, nos domingos as delegacias estão desertas [...] Outro ponto crítico para os han, submetidos à dura política de controle familiar que ainda impõe o filho único, o fato é que os uigures podem ter dois ou três filhos. Como muçulmanos, portanto, têm salário maior, em virtude de que, não podendo comer carne de porco, devem comprar carne de ovelha, que é mais cara”.
Então não tem sentido, como faz a propaganda filo-imperialista, acusar o governo de Pequim de querer apagar a identidade nacional e religiosa dos uigures.
Naturalmente, junto com o perigo representado pelas minorias, por um lado, envenenadas, em certos setores, pelo fundamentalismo e, por outro lado, incitadas pelo Ocidente, é preciso ter presente o perigo do chauvinismo han, que também nesses dias se faz sentir; e é um problema para o qual o Partido Comunista Chinês sempre chamou a atenção, desde Mao Tse-dung até Ju Jintao. Mas aqueles que, à esquerda, estão inclinados a transfigurar o separatismo dos uigures, fariam bem em ler a entrevista publicada, algumas semanas antes dos últimos acontecimentos, por Rebiya Kadeer, a líder do movimento separatista uigur. Do seu exílio estadunidense, falando com uma jornalista italiana, a referida senhora assim se exprime: “Veja, você gesticula como eu, tem a mesma pele branca; você é indoeuropeia, gostaria de ser oprimida por um comunista de pele amarela?” Como se vê, o argumento decisivo não é a condenação da “invasão” han, nem sequer o anticomunismo. Antes, a mitologia ariana, ou “indoeuropeia”, exprime toda a sua repugnância pelos bárbaros de “pele amarela”.